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Um dia de cão

Sabe, eu tenho um cão. Nem posso dizer que “tenho”, acredito que convivemos. Isto porque o destino me fez considerar que uma companhia silenciosa e fiel fosse a melhor solução para os meus devaneios.

Meus delírios pareciam ser mais espontâneos se não tivesse um ser igual para considerar diferenças, indagar e questionar-me. Mas, acredite, não foi bem isso que me deparei ao longo da convivência com este ser quadrupede estranho.

Nossa convivência começou a se deteriorar a partir do momento que percebi minha preocupação em saber sobre suas considerações a respeito de minha personalidade tão controversa. Acho que ele se cansou.

Nos primeiros tempos, ele me recebia empolgado, pulava em minha perna, latia e pedia colo. Lhe dava toda a atenção, retribuída com um lamber frenético e um olhar atento. Acreditava que estávamos construindo uma relação afetiva intensa. Mas, o tempo mostrou que não seria bem assim.

Com o tempo, há o tempo, ele já não ficava mais tão interessado em meus assuntos. Era começar o meu discurso e o cão se retirava. Pulava do sofá, caminhava para um quarto, ou brincava com bolas pequenas, coloridas, jogadas pelo chão. E cá entre nós, como este cão sabe espalhar seus brinquedos, brincando com a minha paciência de ter que recolhê-los ao final do dia.

A gota que fez transbordar o copo de nossa convivência foi numa noite de sexta-feira, quando cheguei exausto do trabalho. Como já há algum tempo, ele se quer apareceu para me cumprimentar, ou fazer o descaso de perceber minha presença e virar-se caminhando para longe.

Por um instante, pensei, será que o meu companheiro se foi desta para melhor? Morreu?

Sei que este é um pensamento maléfico, afinal, para quem o quis dentro da minha vida, da minha casa, como confidente, agora me via com desejos íntimos de ter o cão falecido. Porém, mais alguns passos e percebi o porquê de sua ausência… Almofadas destruídas, cortinas arrancadas, depravação em forma de defecações espalhadas por todo o canto.

Depois desta devastação em minha intimidade, me veio de rompante, “Eu não entendo este cachorro, ele é totalmente pirado.” Um ser tomado por algum espírito que me odeia e por isso, se apoderou do corpo canino para expressar sua ira.

Mas, dizem que temos que enfrentar nossos “demônios”. Sai a procura do cão, olhei por todos os lados, fucei e finalmente o encontrei, debaixo da cama, silencioso.

Deitado, olhando para o cão escondido, estendi o braço e o puxei para fora de seu esconderijo. Ele me mordeu.

Me veio a mente, por que não o trucidar? Ele é um ser irracional que me provoca, irrita, despreza. Lhe sustento e não recebo se quer o que mereço, atenção e carinho. Como a ingratidão pode estar em um animal irracional o qual tudo deve a minha existência?

Fui ao banheiro, estanquei o sangue, e me vi diante do espelho. O ódio ainda estava presente, mas a racionalidade aos poucos foi me acalmando a indignação. Passei o restante da noite desprezando o cão ingrato e desprezível, remoendo o dia em que resolvi trazê-lo para minha vida. Adormeci e o esqueci.

No sábado não trabalharia, logo, o sono poderia me tomar por horas. E fiz isso, deixei me levar pela preguiça. Afinal, o que poderia me fazer acordar com uma expectativa de um dia dividido com alguém, se o único ser que divide o apartamento comigo é um cão que não me quer bem.

Lá pelas tantas, de uma manhã pela metade, acordei sendo lambido, patas sobre o peito e um rabo abanando intensamente. O agressor agora vinha me despertar. Por um instante pensei, me agrada agora, me maltrata depois.

Porém, não resisti. Simplesmente sorri e o acariciei.

Preparei o café, dividi o pão com meu cão. Coloquei-lhe a coleira e tomamos a rua. Caminhamos, passeamos, ele puxava a coleira, cheirava, batizava árvores e postes. A sacola plástica levada no bolso acabou por retirar da calçada a satisfação defecada do cão. Voltamos para casa.

Passei a tarde no sofá, com ele ao meu lado. Carícias mútuas e um jantar a dois. Assistimos a um filme e brincamos com suas bolas espalhadas por todos os cantos. Li, e ele permaneceu em meus pés. Fiz o que um final de semana solitário permite a um ser humano acompanhado de seu cão. Mas, de repente, a solidão já não me pesava.

Ao final do dia, dividi a cama com meu cão enlouquecido, antes de desligar o abajur, dei uma última olhada em minha mão ainda com as marcas de seus dentes. Já não era para mim um sinal de raiva. Agora refletia, às vezes, a gente não tem um bom dia, mas isso passa. Meu cão deveria ter tido seus motivos ao me morder. Há outras dores quando se tem um ser humano ao lado.

 

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