Pesquise por hashtags, nomes, e assuntos Pesquisar

A morte do “Eu”

Eu sou ruim. É assim que me sinto diante do espelho. Assim que me vejo, um “eu ruim”. No meio de tantas possibilidades, de tantas escolhas, porque ela escolheria à mim? Eu mesmo não me escolheria. Tem coisa bem melhor por aí.

Mas, me detestar, talvez seja o resultado de uma noite mal dormida. Lavo o rosto, faço a barba, escovo os dentes, nem sempre nesta ordem, e saio. Respiro fundo e penso, “que o mundo terá que suportar um pouco mais deste eu”. Logo, você já concluiu que não vou com a minha cara.

Dirijo até o trabalho ouvindo qualquer coisa, as vezes, sem intenção. Nem sei porque ligo o rádio do carro, eu não escuto nada com atenção. Estou sempre com a cabeça em outro lugar. Se fala tanto para não usar o celular ao volante, eu deveria dirigir sem a minha cabeça. Ela sempre está desconectada da realidade. Por sinal, a minha realidade é sempre um ponto de fuga. Amo fugir.

Mas, agora eu preciso voltar a pensar nela, a essa mulher, antes que o semáforo de o sinal e eu precise sair do ponto de estática, onde minha vida sempre está. Este sempre é o melhor momento para delirar na imagem do desejo, parado no cruzamento.

Por sinal, falando nela, o desejo é sempre a melhor expressão ou o sentimento que tenho. Um sentimento que considero ser unilateral. Mas, detestando o meu eu, sou capaz de tanto desejo por alguém que supero a ausência da reciprocidade.

Enquanto ainda deliro, já cheguei ao trabalho. Atravesso o corredor logo após a recepção, Dona Tereza, a mulher cinquentona da recepção, me cumprimenta, sorrindo e com olhar de admiração. Sempre penso que o profissionalismo desta mulher começa cedo, recebe todos como se fossem um encontro surpreendente cheio de atração. Não me engano, de regra, na recepção sempre repousa a falsidade das intenções.

Chego a minha sala, todos me esperam, minha equipe de trabalho, os cinco condenados a convivência. Mas, se a pena a ser cumprida é deles, a minha também tem seu sacrifício. Trabalhar com quem se gosta é sempre mais estimulante do que conviver com quem se suporta. Eles e eu estamos no pêndulo movido por uma roleta russa, vamos ver onde ela vai parar hoje, no céu ou no inferno.

No meio do trabalho, à frente do computador, vidrado na tela, me canso do trabalho. Nestas horas, procuro histórias de pessoas interessantes e delirantes, imagens empolgantes de pessoas e lugares atraentes. Amo sonhar não ser eu. Amaria por um instante ser outro, viver uma outra vida. Mas, a realidade encardida e impregnada sempre me chama a realidade. Tropeço nas tarefas da existência e retorno, sempre desejando ficar, sonhar. Mas, quando se vive no inferno nunca se é dono do próprio corpo.

Volto a pensar nela, novamente o desejo. Fico na espera de que no encontro de hoje a noite eu possa me sentir por um momento enganado, iludido em ser amado. Que seja.

Sei que vou fazer uma entrega e o outro irá apenas estender minimante os braços para dar um afago em quem se quer tem o mínimo de amor próprio. Mesmo assim, tiro foto, coloco na Face e no Insta e apresento ao mundo a ilusão de uma existência de fachada feliz.

Passo o dia olhando o relógio, do pulso ou da parede, esperando o fim da tarde e o começo de um suspiro de vida.

Arrastado, o ponteiro chega ao momento esperado, saio. Passo em casa, me arrumo, ajeito coisas, compro presentes, espero o momento de vê-la, olhar para o desejo. Instante de uma dignidade comprada a preço do esquecimento de si mesmo e de mimos compensatórios.

Desesperado, mas com gestos contados, insuportavelmente controlado, ligo o carro, pego a rua e vou ao meu encontro com o outro, me deixando para trás. Sim, o pior ficou sentado no sofá, vendo televisão. O melhor que ainda resta está atrás do volante, a caminho do encontro.

Minha cabeça, como sempre se descola do corpo, rádio ligado e o ouvindo desligado, a mente sonhando.

Cruzo a rua, viro a esquina, e o destino me encontra, colisão. Arrebatador acidente de percurso, minha distração atravessa a preferencial e a luz do carro que vem em minha direção me ofusca, de repente tudo se apaga. Como com olhos fechados, sinto o silêncio.

Pouco depois, meus olhos se abrem, outra luz à frente, imagens, pessoas, paisagens. É a minha TV ligada, eu sentado no sofá. Sim, aquele que eu pensei ter deixado em casa, o eu insuportável, agora tem tempo para admirar a feliz existência alheia enquanto a sua passa pacientemente e inerte observando sem viver. O “eu” morreu.

Fala pra gente o que achou

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *